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Fragmento da Peça “Auto da Compadecida”
Ariano Suassuna
JOÃO GRILO - Ah isso é comigo. Vou fazer um chamado especial, em
verso. Garanto que ela vem, querem ver? (Recitando).
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré!
A vaca mansa dá leite,
A braba dá quando quer.
A mansa dá sossegada,
A braba levanta o pé.
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
Só me falta ser mulher.
ENCOURADO - Vá vendo a falta de respeito, viu?
JOÃO GRILO - Falta de respeito nada, rapaz! Isso é o versinho de
Canário Pardo que minha mãe cantava para eu dormir. Isso tem
nada de falta de respeito!
Já fui barco, fui navio,
Mas hoje sou escaler.
Já fui menino, fui homem,
Só me falta ser mulher.
Valha-me Nossa Senhora,
Mãe de Deus de Nazaré.
(Cena igual à da aparição de Nosso Senhor, e Nossa Senhora, a
Compadecida, entra).
ENCOURADO [com raiva surda] - Lá vem a compadecida! Mulher em
tudo se mete!
JOÃO GRILO - Falta de respeito foi isso agora, viu? A senhora se
zangou com o verso que eu recitei?
A COMPADECIDA - Não, João, por que eu iria me zangar? Aquele é o
versinho que Canário Pardo escreveu para mim e que eu agradeço.
Não deixa de ser uma oração, uma invocação. Tem umas graças,
mas isso até a torna alegre e foi coisa de que eu sempre gostei.
Quem gosta de tristeza é o diabo.
JOÃO GRILO - É porque esse camarada aí, tudo o que se diz ele
enrasca a gente, dizendo que é falta de respeito.
A COMPADECIDA - É máscara dele, João. Como todo fariseu, o diabo
é muito apegado às formas exteriores. É um fariseu consumado.
ENCOURADO - Protesto.
MANUEL - Eu já sei que você protesta, mas não tenho o que fazer,
meu velho. Discordar de minha mãe é que não vou.
ENCOURADO - Grande coisa esse chamego que ela faz para salvar
todo mundo! Termina desmoralizando tudo.
SEVERINO - Você só fala assim porque nunca teve mãe.
JOÃO GRILO - É mesmo, um sujeito ruim desse, só sendo filho de
chocadeira!
A COMPADECIDA - E para que foi que você me chamou, João?
JOÃO GRILO - É que esse filho de chocadeira quer levar a gente para
o inferno. Eu só podia me pegar com a senhora mesmo.
ENCOURADO - As acusações são graves. Seu filho mesmo disse que
há tempo não via tanta coisa ruim junta!.
A COMPADECIDA - Ouvi as acusações.
ENCOURADO - E então?
JOÃO GRILO - E então? Você ainda pergunta? Maria vai nos
defender. Padre João, puxe aí uma Ave-Maria!
PADRE (ajoelhando-se - Ave-Maria, cheia de graça, o Senhor é
convosco, bendita sois vós entre as mulheres, bendito é o fruto de
vosso ventre, Jesus.
JOÃO GRILO - Um momento, um momento. Antes de respondermos,
lembrem-se de dizer, em vez de “agora e na hora de nossa morte”,
“agora na hora de nossa morte”, porque do jeito que nós estamos,
está tudo misturado.
TODOS - Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora
na hora de nossa morte. Amém.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 26ª ed. Rio de Janeiro: Agir,1993.
Disponível em: http://www.vermelho.org.br/noticia/246438-1. Acesso em 06 de
out. de 2018.
O PAGADOR DE PROMESSAS (fragmento)
Dias Gomes
(...)
SACRISTÃO
Não sei. Um deles quer falar com o senhor.
ZÉ
(Adianta-se)
Sou eu, Padre.
(Inclina-se, respeitoso e beija-lhe a mão)
PADRE
Agora está na hora da missa. Mais tarde, se quiser...
ZÉ
É que eu vim de muito longe, Padre. Andei sete léguas...
PADRE
Sete léguas? Para falar comigo.
ZÉ
Não, pra trazer esta cruz.
PADRE
(Olha a cruz, detidamente)
E como a trouxe... num caminhão?
ZÉ
Não, Padre, nas costas.
SACRISTÃO
(Expandindo infantilmente a sua admiração) Menino!
PADRE
(Lança-lhe um olhar enérgico) Psiu!
Cale a boca!
(Seu interesse por Zé-do-Burro cresce)
Sete léguas com essa cruz nas costas. Deixe ver seu ombro. Zé -
do Burro despe um lado do paletó, abre a camisa e mostra o ombro.
Sacristão espicha-se todo para ver e não esconde a sua impressão
SACRISTÃO
Está em carne viva!
PADRE
(Parece satisfeito com o exame) Promessa?
ZÉ
(Balança afirmativamente a cabeça)
Pra Santa Bárbara. Estava esperando abrir a igreja...
SACRISTÃO
Deve ter recebido dela uma graça muito grande! Padre faz um gesto
nervoso para que o Sacristão se cale.
ZÉ
Graças a Santa Bárbara, a morte não levou o meu melhor amigo.
PADRE
(Padre parece meditar profundamente sobre a questão)
Mesmo assim, não lhe parece um tanto exagerada a promessa? E
um tanto pretensiosa também?
ZÉ
Nada disso, seu Padre. Promessa é promessa. É como um negócio.
Se a gente oferece um preço, recebe a mercadoria, tem que pagar.
Eu sei que tem muito caloteiro por aí. Mas comigo, não. É toma lá,
dá cá. Quando Nicolau adoeceu, o senhor não calcula como eu
fiquei.
PADRE
Foi por causa desse... Nicolau, que você fez a promessa?
ZÉ
Foi. Nicolau foi ferido, seu Padre, por uma árvore que caiu, num dia
de tempestade.
SACRISTÃO
Santa Bárbara! A árvore caiu em cima dele?!
ZÉ
Só um galho, que bateu de raspão na cabeça. Ele chegou em casa,
escorrendo sangue de meter medo! Eu e minha mulher tratamos
dele, mas o sangue não havia meio de estancar.
PADRE
Uma hemorragia.
ZÉ
Só estancou quando eu fui no curral, peguei um bocado de bosta
de vaca e taquei em cima do ferimento.
PADRE
(Enojado)
Mas meu filho, isso é atraso! Uma porcaria!
ZÉ
Foi o que o doutor disse quando chegou. Mandou que tirasse aquela
porcaria de cima da ferida, que senão Nicolau ia morrer.
PADRE
Sem dúvida.
ZÉ
Eu tirei. Ele limpou bem a ferida e o sangue voltou que parecia uma
cachoeira. E que de que o doutor fazia o sangue parar? Ensopava
algodão e mais algodão e nada. Era uma sangueira que não acaba
mais. Lá pelas tantas, o homenzinho virou pra mim e gritou: corre,
homem de Deus, vai buscar mais bosta de vaca, senão ele morre!
PADRE
E... o sangue estancou?
ZÉ
Na hora. Pois é um santo remédio. Seu vigário sabia? Não sendo de
vaca, de cavalo castrado também serve. Mas há quem prefira teia
de aranha.
PADRE
Adiante, adiante. Não estou interessado nessa medicina.
ZÉ
Bem, o sangue estancou. Mas Nicolau começou a tremer de febre e
no dia seguinte aconteceu uma coisa que nunca tinha acontecido:
eu saí de casa e Nicolau ficou. Não pôde se levantar. Foi a primeira
vez que isso aconteceu, em seis anos: eu saí, fui fazer compras na
cidade, entrei no Bar do Jacob pra tomar uma cachacinha, passei
na farmácia de “seu” Zequinha pra saber das novidades - tudo isso
sem Nicolau. Todo mundo reparou, porque quem quisesse saber
onde eu estava, era só procurar Nicolau. Se eu ia na missa, ele
ficava esperando na porta da igreja…
PADRE
Na porta? Por que ele não entrava? Não é católico?
ZÉ
Tendo uma alma tão boa, Nicolau não pode deixar de ser católico.
Mas não é por isso que ele não entra na igreja. É porque o vigário
não deixa.
(Com grande tristeza)
Nicolau teve o azar de nascer burro... de quatro patas.
PADRE
Burro?! Então esse... que você chama de Nicolau, é um burro?! Um
animal?!
ZÉ
Meu burro... sim senhor.
PADRE
E foi por ele, por um burro, que fez essa promessa?
ZÉ
Foi... é bem verdade que eu não sabia que era tão difícil achar uma
igreja de Santa Bárbara, que ia precisar andar sete léguas pra
encontrar uma, aqui na Bahia...
BONITÃO
(Que assistiu a toda a cena, um pouco afastado, solta uma
gargalhada grosseira) Ele se estrepou.
Padre Olavo olha-o, surpreso, como se só agora tivesse
notada a sua presença. Bonitão pára de rir quase de súbito,
desarmado pelo olhar enérgico do padre.
ZÉ
Mas mesmo que soubesse, eu não deixava de fazer a promessa.
Porque quando vi que nem as rezas do preto Zeferino davam jeito...
PADRE
Rezas?! Que rezas?!
ZÉ
Seu vigário me disculpe... mas eu tentei tudo. Preto Zeferino é
rezador afamado na minha zona: Sarna de cachorro, bicheira de
animal, peste de gado, tudo isso ele cura com duas rezas e três
rabiscos no chão. Todo o mundo diz... e eu mesmo, uma vez, estava
com uma dor de cabeça danada, que não havia meio de passar...
Chamei preto Zeferino, ele disse que eu estava com o Sol dentro da
cabeça. Botou uma toalha na minha testa, derramou uma garrafa
d’água, rezou uma oração, o sol saiu e eu fiquei bom.
PADRE
Você fez mal, meu filho. Essas rezas são orações do demo.
ZÉ
Do demo, não senhor.
(...)
PADRE
(Secamente, contendo ainda a sua indignação) Adiante.
ZÉ
Foi então que comadre Miúda me lembrou: por que eu não ia no
candomblé de Maria de Iansan?
PADRE
Candomblé?!
ZÉ
Sim, é um candomblé que tem duas léguas adiante da minha roça.
(Com a consciência de quem cometeu uma falta, mas não muito
grave)
Eu sei que seu vigário vai ralhar comigo. Eu também nunca fui
muito de freqüentar terreiro de candomblé. Mas o pobre Nicolau
estava morrendo. Não custava tentar. Se não fizesse bem, mal não
fazia. E eu fui. Contei pra Mãe-de-Santo o meu caso. Ela disse que
era mesmo com Iansan, dona dos raios e das trovoadas. Iansan
tinha ferido Nicolau... pra ela eu devia fazer uma obrigação, quer
dizer: uma promessa. Mas tinha que ser uma promessa bem
grande, porque Iansan, que tinha ferido Nicolau com um raio, não
ia voltar atrás por qualquer bobagem. E eu me lembrei então que
Iansan é Santa Bárbara e prometi que se Nicolau ficasse bom eu
carregava uma cruz de madeira de minha roça até a Igreja dela, no
dia de sua festa, uma cruz tão pesada como a de Cristo.
PADRE
(Como se anotasse as palavras)
Tão pesada como a de Cristo. O senhor prometeu isso a...
ZÉ
A Santa Bárbara.
PADRE
A Iansan!
ZÉ
É a mesma coisa...
PADRE
(Grita)
Não é a mesma coisa!
(Controla-se)
Mas continue.
ZÉ
Prometi também dividir minhas terras com os lavradores pobres,
mais pobres que eu.
PADRE
Dividir? Igualmente?
ZÉ
Sim, padre, igualmente.
(...)
PADRE
(Dá alguns passos de um lado para outro, de mão no queixo e por
fim detém-se diante de Zé-do-Burro, em atitude inquisitorial)
Muito bem. E que pretende fazer depois... depois de cumprir a sua
promessa?
ZÉ
(Não entendeu a pergunta)
Que pretendo? Voltar pra minha roça, em paz com a minha
consciência e quite com a santa.
PADRE
Só isso?
ZÉ
Só...
PADRE
Tem certeza? Não vai pretender ser olhado como um novo Cristo?
ZÉ
Eu?!
PADRE
Sim, você que acaba de repetir a Via Crucis, sofrendo o martírio de
Jesus. Você que, presunçosamente, pretende imitar o Filho de
Deus...
ZÉ
(Humildemente)
Padre... eu não quis imitar Jesus...
PADRE
(Corta terrível)
Mentira! Eu gravei suas palavras! Você mesmo disse que prometeu
carregar uma cruz tão pesada quanto a de Cristo.
ZÉ
Sim, mas isso...
PADRE
Isso prova que você está sendo submetido a uma tentação ainda
maior.
ZÉ
Qual, Padre?
PADRE
A de igualar-se ao Filho de Deus.
ZÉ
Não, Padre.
PADRE
Por que então repete a Divina Paixão? Para salvar a humanidade?
Não, para salvar um burro!
ZÉ
Padre, Nicolau...
PADRE
É um burro com nome cristão! Um quadrúpede, um irracional! A
Beata sai da igreja e fica assistindo à cena, do alto da escada.
ZÉ
Mas Padre, não foi Deus quem fez também os burros?
PADRE
Mas não à Sua semelhança. E não foi para salvá-los que mandou
seu Filho. Foi por nós, por você, por mim, pela Humanidade!
ZÉ
(Angustiadamente tenta explicar-se)
Padre, é preciso explicar que Nicolau não é um burro comum... o
senhor não conhece Nicolau, por isso... é um burro com alma de
gente...
PADRE
Pois nem que tenha alma de anjo, nesta igreja você não entrará com
essa cruz!
(Dá as costas e dirige-se à igreja. O sacristão trata logo de segui-lo).
ZÉ
(Em desespero)
Mas Padre... eu prometi levar a cruz até o altar-mor! Preciso
cumprir a minha promessa!
PADRE
Fizesse-a então numa igreja. Ou em qualquer parte, menos num
antro de feitiçaria.
(...)
ZÉ
Padre, eu não andei sete léguas para voltar daqui. O senhor não
pode impedir a minha entrada. A igreja não é sua, é de Deus!
PADRE
Vai desrespeitar a minha autoridade?
(...)
GOMES, Dias. O pagador de promessas. 29. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1986.